ESTESIA E
CANÇÃO INFANTIL
Márcio Coelho
Há muito, tenho observado a dificuldade que alguns textos
apresentam às crianças, no que concerne à apreensão de seu conteúdo. Notem que
estou utilizando o termo “texto” na acepção da semiótica de linha francesa, ou
seja, como qualquer objeto de significação: um filme, uma história em
quadrinhos, uma canção popular etc. No presente artigo, especialmente,
abordarei a ocorrência desses problemas em textos de ordem auditiva e/ou
visual.
Chamou-me a atenção para esse assunto uma HQ da Turma da
Mônica, na qual o personagem Dudu, um menino não alfabetizado, observando uma
turma de meninas que brincavam de roda, questiona o conteúdo dos brinquedos
cantados. As meninas cantavam: “Escravos de Jó jogavam caxangá...”, Dudu intervém
querendo saber quem era aquele tal de Jó e por que ele tinha escravos, fazendo
a defesa dos direitos trabalhistas. Em seguida, pergunta às meninas o que é
caxangá. Como nenhuma delas soube responder, foi para casa consultar a sua mãe.
Pouco tempo depois, retorna com a seguinte resposta: “Caxangá é um decápode,
braquiúro, da família dos portunídeos, mas também pode ser chamado caranguejo”
(na verdade, os dicionários dão siripuã como sinônimo de canxangá, portanto,
caxangá é siri e não caranguejo). Dudu faz a defesa dos animais, afirmando que
os escravos de Jó poderiam jogar palitinhos, em vez de caranguejos. Daí, ele
segue questionando o conteúdo dos brinquedos cantados, até que as meninas se
aborrecem e dele se afastam. Caminhando, mais à frente, Dudu encontra outra
turminha brincando: “Eu fui no Itororó beber água e não achei...”
Imediatamente, Dudu interpela as meninas, indagando o porquê de no Itororó não
ter água: “seria por causa de um racionamento?” A história termina.
Qual de nós não cantou “Atirei o pau no gato” da seguinte
maneira:
“Atirei o pau no gato
tô
Mas o gato tô
Não morreu reu reu
Dona Chica ca
Dimirô cê cê
Do berrô, do berrô
Que o gato deu
Miau!”
Privilegiando a expressão em detrimento do conteúdo, ou
melhor, a melodia em detrimento da letra, a canção transforma o substantivo
paroxítono em oxítono, ao incidir o acento melódico sobre sua última sílaba, e
berro vira “berrô”. O soldamento das notas musicais que incidem sobre as vogais
“a” do último “ca” de “Chica ca” e a mesma vogal de “admirou-se” anula o ataque da emissão da vogal do início do verbo
pronominal, isto é, tudo funciona como um efeito de crase entre os dois “as”:
“Dona Chica caa dmirou-se se”.
Somado a esse (d) efeito de sentido está o fato de os brasileiros pronunciarem
um “i” após consoantes mudas. No Brasil, fala-se “capitar”, em vez de captar;
“impreguinar”, em vez de impregnar; portanto, é natural também que o vocábulo
admirar seja pronunciado de maneira semelhante: “adimirar”. Dos vocábulos
terminados em “ou”, que denotam um tempo passado, os falantes brasileiros
suprimem o som do “u”, então ouvimos frases como as seguintes: (i) “A Ana ‘passô’ por aqui”, “A Fátima ‘namorô’ o Márcio”, em lugar de “A Ana passou por aqui”, “A Fátima namorou o Márcio”. Dessa maneira, o conteúdo
do verbo pronominal se perde (“admirou-se” torna-se “dimiroce”), mas o vocábulo
ganha outro sentido, pois, quando ouvimos “dimirô cê cê”, compreendemos o “d” -
que deveria ser mudo, mas ganha do falante brasileiro a prótese “i” – como se fosse
a preposição “de” (que também pronunciamos “di”), que denota “procedência, origem, ponto de partida”.
Então imaginamos (ou a criança imagina) que o brinquedo fala de uma certa Dona
Chica que é natural ou moradora de “Mirocecê”; ou quem sabe ela é de “ Mirocecê
do Berrô” e deu um gato (“do berrô que o gato deu”). Importante notar que, com
exceção de “morreu”, todas as palavras que têm sua última sílaba repetida são
paroxítonas. Tal repetição termina por acentuar a última sílaba dessas
palavras, fazendo com que a tendência do ouvinte seja compreendê-las como
oxítonas. Daí para inferências equivocadas em relação à tonicidade dos
vocábulos é um pequeno passo.
Se indagarmos às crianças sobre o conteúdo de “Atirei o
pau no gato”, teremos muitas surpresas, embora, certamente, há unanimidade em
relação à eficácia de sua expressão. É deveras improvável que alguma criança
brasileira não tenha cantado com enorme prazer, ao menos uma vez na vida,
“Atirei o pau no gato”, independentemente da apreensão de seu conteúdo, que,
diga-se de passagem, trata de um crime contra a fauna, de uma violência
gratuita, mas isso é outro assunto.
Transportando essa questão para um ambiente em que a
tradição escrita predomina sobre a tradição oral, ou seja, para o âmbito da
erudição - em oposição ao folclórico, tratado até o momento -, verificamos que
muitas canções para crianças, produzidas na atualidade, não primam por
facilitar a apreensão de seu conteúdo, embora mantenham os pequenos ouvintes
atentos, por vezes até extasiados: é o caso de “O Zotro”, de Márcio Coelho, e
“Gramática”, de Sandra Peres e Luiz Tatit.
O Zotro
Márcio Coelho
O Zotro não me deixa sossegado
O Zotro fica olhando para mim
O Zotro com “esse zóio esbugaiado”
Sabe tudo, tá ligado
O Zotro não larga de mim
O Zotro é um bicho cabeludo
Não fale mal do Zotro por aqui
Senão o Zotro vai ficar zangado
E no sentido figurado
O Zotro mete a boca em mim
O Zotro vem
O Zotro vai
O Zotro encanta
O Zotro nasce como a fala:
Na garganta
Para espantar o mal do Zotro
A gente canta
Pra afugentá-lo, faz careta
Se levanta, se levanta, se levanta, se levanta
Bruuuuuuuuuuuu!
O Zotro vem chegando de mansinho
Tal como ectoplasma ou querubim
Às vezes quero até ficar sozinho
Não tem jeito, quando eu olho
O Zotro tá perto de mim
O Zotro também gosta de fofoca
O Zotro fala mal de qualquer um
Tem personalidade de boboca
Ele invoca, mas, enfim
É mais bobão do que ruim
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Gramática
Sandra Peres e Luiz Tatit
O substantivo /é o substituto
Do conteúdo
O adjetivo /é nossa impressão
Sobre quase tudo
O diminutivo /é o que se aperta no mundo
E deixa miúdo
O imperativo /é o que aperta os outros
E deixa mudo
Um homem de letras /dizendo idéias
Sempre se inflama
Um homem de idéias /Nem usa letras
Faz ideograma
Se altera as letras /E esconde o nome
Faz anagrama
Mas se mostro o nome /Com poucas letras
É um telegrama
Nosso verbo ser /É uma identidade
Mas sem projeto
E se temos verbo /Com objeto
É bem mais direto
No entanto falta /Ter um sujeito
Pra ter afeto
Mas se é um sujeito /Que se sujeita
Ainda é objeto
Todo barbarismo /É o português
Que se repeliu
O neologismo /É uma palavra
Que não se ouviu
Já o idiotismo /É tudo que a língua
Não traduziu
Mas tem idiotismo /Também na fala
De um imbecil
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Não é preciso ser um especialista para inferir que as
crianças que admiram essas duas canções - e outras canções desse tipo - não
compreendem a integralidade do conteúdo manifestado.
“O Zotro” faz uma
brincadeira no nível da manifestação da língua; apresenta uma migração de
fonema que produz uma sonoridade, embora comum, que pode causar estranheza a um
estrangeiro estudante da língua portuguesa, por exemplo. O “s” do artigo
definido “os” migra, no plano fônico, para o pronome indefinido “outros”
(o soutros). Da mesma maneira
como acontece com “admirou-se” - em que o encontro vocálico “ou”, funciona como
um “dígrafo”, ou seja, manifesta apenas um fonema -, o “ou” de “outros” é
pronunciado como se aquele encontro vocálico fosse a notação de apenas uma
sonoridade, então ouvimos “otro” no lugar de outros. Também não é raro o
brasileiro suprimir o “s” no final de alguns plurais, principalmente dos mais
regulares, em que se acrescenta apenas o “s”. Então, onde deveríamos ouvir “os
outros”, ouvimos “o zotro”. Daí para criar um personagem não foi difícil.
Logicamente esta figura antropomorfizada tinha de falar mal dos outros, ficar perto dos outros, importunar os outros, isto é, surgir
exatamente nos momentos em que a “garganta” - ou melhor, o aparelho fônico -
cria condições para o seu nascimento (“o Zotro nasce como a fala: na
garganta”).
Já a canção “Gramática” trata da língua em seu nível
imanente, ou seja, trata de seus princípios de organização: regras sintáticas,
classificação de palavras, figuras de linguagem etc., além de fazer poesia por
meio da morfologia, quando mantém o pospositivo “grama” e agrega-lhe três
antepositivos diferentes (“ideo”, “ana”, “tele”) para exemplificar modos de
manifestação da escrita, de acordo com culturas e necessidades diversas
(“ideograma”, “anagrama” e “telegrama”).
Conclusão: é obvio que as crianças que gostam dessas duas
canções não são capazes de perceber e apreciar essas peripécias lingüísticas,
portanto, não é de seu componente fincado no inteligível, de seu conteúdo,
enfim, de sua letra que os pequenos ouvintes destilam seu encanto. Claro que os
ouvintes com um pouco mais de idade conseguem compreender aqui e ali algumas
mensagens do conteúdo, mas, com certeza, no geral, não é essa compreensão que
os leva a ouvir cada vez mais a canção de que gostam. Qual é a chave desse mistério,
então?
A Estesia
Os cancionistas com trabalho infantil que respeitam a
integridade e a capacidade intelectual da criança e postulam um lugar no
mercado – diga-se de passagem, dominado por pseudo artistas mais preocupadas
com a venda de seus subprodutos do que com a qualidade da canção infantil -,
sabem que é preciso agradar também os pais das crianças, pois quem compra CD
são eles.
As loiras da TV dominaram o mercado por mais de duas
décadas, entretanto, vemos, a cada dia, aumentar a preocupação dos pais com a
qualidade da canção que seus filhos consomem. Diante de um mercado que vinha
inescrupulosamente impingindo canções constituídas inclusive por conteúdos de
cunho sexual, a atitude desses pais não poderia ser diferente.
Do lado oposto, hoje temos pais que apreciam, tanto ou
mais que seus filhos, a produção de canções, digamos, mais responsável. Tal
fato levou alguns cancionistas a produzir obras para crianças que resvalam no
gosto dos pais, consequentemente, elas são acometidas por um rebuscamento,
tanto no plano musical quanto no plano lingüístico. Não obstante, essas canções
insistem em encantar as crianças.
O semioticista lituano, radicado na França, Algirdas
Julien Greimas concebeu o Percurso Gerativo do Sentido para dar conta da
construção do sentido nos mais variados textos. Explica-nos a semiótica que a
construção do sentido de um texto se dá em três etapas: (i) no nível profundo,
o mais abstrato, que é o lugar do eixo das oposições semânticas (ou seja, um
texto pode tratar de vida x morte, por exemplo); (ii) já no nível narrativo,
intermediário, forma-se algo que podemos classificar como o esqueleto do texto.
Este é o lugar dos actantes (isto é, em um determinado texto, essa relação vida
x morte pode ser representada por um sujeito que entra em disjunção
com o objeto vida); (iii) No nível discursivo, mais concreto, a relação entre
os actantes é revestida de concretude. Então, aquela disjunção do sujeito com o
objeto vida pode ser revestida por temas como assassinato, suicídio, acidente
etc., e os actantes por figuras como “João que foi morto por Carlos” etc. Na
verdade, esses níveis não existem efetivamente. O Percurso Gerativo do Sentido
é um exemplo do que a semiótica chama “simulacro metodológico”.
Quando o plano do conteúdo (PGS) entra em contato com um
plano de expressão (ou vários deles, caso das linguagens sincréticas), como o
cinema e a canção, por exemplo, temos constituído um texto.
Por muito tempo
a semiótica se ocupou da organização sintática dos mais variados textos. Na
década de oitenta, o eminente semioticista lançou o livro De l´Imperfection (“Sobre a Imperfeição”) voltando o seu olhar para
a relação entre uma obra artística e seu destinatário. Luiz Tatit afirma que
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“a primeira coisa que salta aos olhos do semioticista, ao
proceder à leitura de De l´Imperfection, é o
fato de o sentido (seria outro sentido) resultar de uma fratura – do
discurso, da narrativa, da espera, do devir...- e não mais da sutura anterior”
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Vamos compreender melhor tal proposição. O sentido é construído no percurso gerativo
por meio da ligação entre os seus níveis, como exemplificamos imediatamente
acima. Daí, a sutura. Já na relação objeto artístico e sujeito apreciador, o
que acontece, segundo Greimas, é uma flexibilização das funções, no momento da
apreensão estética. Quando ouvimos uma canção que nos arrebata, sentimos, de
imediato, como que uma fratura no fluxo contínuo da nossa cotidianidade. Tudo
acontece como se nosso cotidiano fosse um fluxo sem sentido – dado o modo
automático de nossas ações – e, ao depararmos com uma obra artística que nos
encanta, esse fluxo abrisse uma fenda temporal, durante a qual fruíssemos sua
beleza.
Nesse momento,
por instantes, a obra passa a ser o sujeito que age sobre nós, ouvintes, que
nos portamos de maneira passiva tal como um objeto, e, em seguida, retornamos à
posição de sujeito observador. Daí, a flexibilidade de funções de que
falávamos. Quando isso acontece, lançamos mão de nossa capacidade de perceber o
sentido da beleza, capacidade que conhecemos pelo nome de “estesia”. No caso da
canção, tanto a melodia como a letra concorrem para tal arrebatamento, ou seja,
tanto o conteúdo como a expressão (ou ambos concomitantemente) pode nos levar
ao enlevo da estesia, ao momento estético.
E no caso daquela criança que mal consegue falar e
compreender o que as outras pessoas falam e mesmo assim se quedam extasiadas
diante de um filme, uma peça de teatro e, principalmente, de uma canção?
Acreditamos, nesse caso, que o arrebatamento se dê no nível “tímico”.
Explicamos.
Certa vez, uma mãe, que acabara de
assistir a um espetáculo musical infantil, comentou que seu filho maior tinha
adorado o espetáculo e o outro, menor, não tinha entendido tudo, mas tinha
“sentido”.
Muitas vezes, ao
tentar lembrar de uma canção que nos encantou em algum momento das nossas
vidas, recordamos primeiro a melodia e apenas alguns fragmentos da letra. Não é
raro que, estando próximo de outras pessoas, a letra seja “reconstruída” em conjunto. Este fato
nos leva a crer que, inconscientemente, damos mais importância para a melodia
do que para a letra, pois, embora sejamos falantes, lembramos primeiro da
expressão musical da canção. Em outras palavras, primeiramente somos
arrebatados pelos estímulos somáticos da melodia de uma canção temática ou
psíquicos de uma canção passional,
para depois nos interessarmos pelo que diz sua letra. Temos então que a letra é
da ordem do inteligível e a melodia da ordem do sensível, e “timia” é a relação
sensível do sujeito corporal com o seu meio. Portanto, mesmo que não sejamos
capazes de compreender a letra de uma canção, ou a gramática musical do seu
discurso melódico, estamos propensos a ser arrebatados por ela por força do
elemento tímico, que é da ordem do afetivo elementar.
Quando ouvimos
um trovão - ou um outro estrondo qualquer -, podemos ficar apreensivos, dada a
relação que fazemos imediatamente entre a expressão sonora e os possíveis
conteúdos que podem a ela estar ligados. E quando um bebê ouve o mesmo estrondo
e começa a chorar mesmo sem a competência para estabelecer tais relações,
estamos diante de que fenômeno? Diante de um fenômeno tímico. A criança não
sabe interpretar tais índices, mas, de acordo com a sua percepção das reações
de seus próximos – a mãe principalmente-, já os sente de maneira disfórica,
assim como os bebês, e mesmo as crianças maiores, não são capazes de perceber
todas as nuanças lingüísticas e musicais de “O Zotro” e “Gramática”, mas sentem
no corpo o sentido de sua beleza.
A semiótica defende
que o que sentimos durante o momento estético é “nostalgia da perfeição”, pois
postula um lugar onde sujeito e objeto são a mesma coisa, habitam um mesmo
corpo. Somente após uma cisão primordial é que o sentido emerge. Desse modo, o
sentido surge da busca do sujeito por um objeto. Esse lugar estaria aquém do
nível fundamental, ou seja, seria o espaço tímico, onde um fluxo contínuo
aguardaria a cisão primordial. Para termos uma idéia do que seria esse espaço
tímico, basta que Imaginemos a “massa amorfa” que habita nossas mentes antes de
proferirmos qualquer enunciado. Somente após uma cisão na continuidade dessa
massa é que o sentido de um discurso pode emergir.
O mito católico
da criação da mulher ilustra tal proposição de maneira exemplar. Se Eva foi criada
a partir de um pedaço de Adão, isso quer dizer que, inicialmente, os dois
constituíam um só corpo. Depois da separação, homem e mulher buscam-se
mutuamente por toda a vida, revezando-se nas posições de sujeito e de objeto de
desejo. Da mesma maneira, durante a gestação, mãe e filho constituem um só
corpo até a separação efetuada por meio do corte do cordão umbilical, e também
buscam-se pelo resto da existência. Donde concluímos que o sujeito só ganha
existência a partir de sua relação com um objeto e vice-versa.
Greimas afirma
que, no momento estético, nosso olhar (ou nossa audição) sofre um “tressaillement” (segundo os dicionários
franceses, um conjunto de vibrações ou estremecimentos musculares que agitam
bruscamente o corpo, sob o efeito de uma emoção ou de uma sensação inesperada).
Acreditamos que seja exatamente isso que aconteça com a criança que escuta
canções como “O Zotro” ou “Gramática”, isto é, embora ela ainda não seja capaz
de fruir a obra cancional em sua plenitude, já consegue, por meio de uma
sensibilidade tímica, estabelecer com ela uma relação de sujeito e objeto. E,
embora ainda não seja capaz de estabelecer conscientemente juízos de valor, que
por definição são da ordem do inteligível, seu corpo, por meio da
sensibilidade, já é capaz de articular um mínimo de sentido. Talvez seja por
isso que figuras disfóricas, como bruxas e monstros, atraiam sua atenção tanto
quanto a de fadas e anjinhos.
Com a ajuda dos pais – ou de outras instâncias educadoras
-, a partir da freqüência de seu contato com as obras cancionais, a criança
começa a articular sua sensibilidade tímica em percepção eufórica ou disfórica.
Então, de maneira incipiente, estará apta a construir juízos de valor.
Se tanto o “lado bruxa” da canção infantil (as loiras da
TV) como seu “lado fada” (Palavra Cantada, Hélio Ziskind, Movimento da canção
Infantil Latino-americana e Caribenha, dentre outros) servem ao desenvolvimento
da sensibilidade musical da criança – já que elas não são capazes de perceber o
conteúdo de canção alguma -, por que optar pelo segundo? Porque, além de o
“lado fada” da canção infantil proporcionar às crianças um ambiente estésico de
prestígio social, ele contribui para o desenvolvimento de seu gosto estético e
de sua inteligência inter e intrapessoal, por meio desenvolvimento da sua
sensibilidade. Contribui, também, para o aumento de seu repertório cultural, em
geral, e musical, cancional e lingüístico, especificamente, dado que os
partidários do “lado fada” da canção infantil, por serem menos comprometido com
o mercado, estão mais atentos às diversidades e isso repercute em suas
composições. Com certeza, as crianças que conviverem com tal ambiente estético
agradecerão futuramente aos seus pais por não terem sido expostas à usura do
mercado, não sendo estimuladas a consumir, além das canções, subprodutos
gerados por indústrias agregadas à indústria fonográfica. Agradecerão, também,
por terem tido sua integridade infantil preservada, não sendo expostas a uma
sexualidade anacrônica, e por terem crescido acreditando que o Brasil é um país
maior e a América Latina um continente que merece respeito.